Uso de álcool e outras drogas em pessoas com Transtornos do Humor

Luís Pereira Justo – Psiquiatra – Mestre pela EPM/UNIFESP

I – INTRODUÇÃO

As pessoas portadoras de patologias do humor, como transtornos bipolares e transtornos depressivos, estão mais vulneráveis a outros problemas de saúde. Entre estes, é de particular importância o uso problemático de substâncias, como álcool, cocaína/crack, maconha e várias outras drogas, incluindo o tabaco. Chamamos de uso problemático, o uso que possa trazer prejuízos objetivos à pessoa, como dependência, abuso/uso nocivo, exposição a situações de risco, como contaminação pelo HIV, agravamento de outras doenças já existentes na pessoa e prejuízo a tratamentos em curso, para falar dos problemas mais importantes. Neste artigo, vamos abordar brevemente informações sobre o uso destas substâncias e sua a relação com os transtornos do humor.

II – O ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

Muitas substâncias tanto lícitas, quanto ilícitas podem levar seus usuários a condições patológicas chamadas de abuso/uso nocivo e dependência. Abuso é um termo técnico para diagnosticar a condição decorrente do uso repetido e prejudicial de uma substância. Os prejuízos devem ser detectáveis objetivamente. Apresentam-se como:

A – Exposição a situações de perigo,
B – Dificuldade de cumprir obrigações,
C – Problemas legais recorrentes,
D – Interferência nas relações sociais e familiares

Importante destacar o fato de que no abuso, ainda não se configura a compulsão para o uso, ou seja, o consumo da substância está causando danos, mas a pessoa consegue deixar de consumir, com certa facilidade, se estiver determinada a isso. A expressão diagnóstica “uso nocivo” tem sentido muito semelhante ao de abuso, exceto pelo item D.

O conceito de dependência é empregado para definir a situação na qual a pessoa está fazendo uso repetido e claramente prejudicial de uma substância e não consegue ou tem extrema dificuldade de interromper, mesmo quando se esforça para isso. No caso de haver dependência, o uso da substância é compulsivo, e a pessoa começa a ter modificações de comportamento, para priorizar as possibilidades de consumo, em detrimento de outros comportamentos, que antes eram valorizados por ela. A caracterização da dependência se faz utilizando os seguintes critérios:

A – Desejo irreprimível de obter e consumir a substância
B – Dificuldade de controlar início, término ou quantidades do consumo
C – Sintomas de abstinência, logo após a interrupção do consumo
D – Necessidade do aumento de quantidades
E – Diminuição ou interrupção das atividades habituais
F – Incapacidade de interromper o consumo, mesmo reconhecendo os danos

Mesmo que não estejam presentes todos os itens acima, pelo menos três deles devem ocorrer num mesmo período de tempo, para que possamos pensar na existência da dependência. Álcool, tabaco, cocaína, crack, maconha, anfetaminas e muitas outras drogas podem ser ingeridas nestes padrões. As causas para o estabelecimento de dependência se compõem de um conjunto de fatores de ordens variadas, como vulnerabilidade biológica e psicológica da pessoa, propriedades da droga e frequência de uso. A dependência implica em modificações do funcionamento cerebral e é uma condição crônica: uma vez instalada, a pessoa não poderá mais se expor à substância da qual é dependente, mesmo após tratamento, sob risco de voltar ao tipo de uso que precedeu as intervenções terapêuticas. É sempre importante lembrar que quando alguém se torna dependente de uma substância, dificilmente é possível abandonar os comportamentos ligados ao consumo, sem tratamento adequado; não basta força de vontade, retidão de caráter, etc.

Algumas substâncias, como o álcool, consumido com controle e moderação e certos medicamentos (analgésicos opioides e benzodiazepínicos), quando usados estritamente do modo prescrito por um médico, podem ser consumidos de modo saudável, não representado perigo, invariavelmente. A Organização Mundial de Saúde recomenda que o máximo de álcool ingerido por homens seja de duas doses diárias e mulheres de uma dose. Uma dose corresponde a 1 lata de 350ml de cerveja, 1 copo de 140ml de vinho ou 40ml de destilado. Todavia, substâncias, como cocaína, crack (uma variação da cocaína), maconha, ecstasy, heroína e muitas outras, representam sempre perigo. O uso de anfetaminas ( muito prescritas nos programas de emagrecimento) é arriscado e pode causar modificações profundas do comportamento, além de dependência.

Temos ainda que mencionar a situação em que os indivíduos consomem álcool ou outras drogas e não se tornam dependentes, mas podem sofrer outros tipos de danos de igual ou maior magnitude. Para dar alguns exemplos, o consumo pesado e prolongado de álcool aumenta a chance de surgimento de câncer em vários órgãos do corpo, especialmente aparelho digestivo, além de cirrose, hepatite e pancreatite; uso de drogas injetáveis como cocaína e opioides, pode provocar doenças infecciosas e inflamatórias, locais ou disseminadas, e está muito associado ao contágio pelo HIV e hepatites, em função do compartilhamento de seringas; a intoxicação aguda por cocaína pode provocar infarto agudo do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais; a maconha, após uso prolongado pode levar à “síndrome amotivacional”, em que a pessoa tem muita dificuldade de executar tarefas e até fazer planos, tornando-se “apática”.

Portanto, vale a pena ter em mente que álcool e demais drogas, lícitas ou ilícitas, são potencial risco para a boa saúde das pessoas.

III – A RELAÇÃO DO USO DE SUBSTÂNCIAS COM OS TRANSTORNOS DO HUMOR

Estudos epidemiológicos mostram que os diagnósticos de abuso ou dependência de álcool e outras drogas durante a vida, são muito mais frequentes em pessoas com transtornos do humor do que na população geral. Por exemplo, um estudo feito nos Estados Unidos mostrou que abuso e dependência de substâncias estão presentes em 61% de pessoas com transtorno bipolar do tipo I, 48% de pessoas com transtorno bipolar do tipo II e 27% em pessoas com transtorno de depressão maior; e na população geral a taxa é de 17% (Kessler, 2004).

Os dados acima são especialmente preocupantes por ser sabido que o uso de álcool e outras drogas, em pessoas que tenham transtorno bipolar ou depressão, tendem a acarretar sérias consequências para a evolução da doença, sucesso do tratamento e manutenção do equilíbrio na vida. As dificuldades se iniciam com confusões diagnósticas, que acontecem quando há esta comorbidade. Além disso, nas pessoas que ingerem álcool em excesso ou drogas, os sintomas depressivos e maníacos tornam-se mais graves e menos responsivos ao tratamento com medicamentos, especialmente ao lítio, importante estabilizador de humor. Vários estudos têm demonstrado que quando pessoas com transtornos do humor passam a fazer abuso ou tornam-se dependentes de álcool e/ou drogas, elas não seguem corretamente as prescrições dos médicos, e faltam mais, ou abandonam consultas e sessões de psicoterapia, o que geralmente leva a fracasso do tratamento. Os comportamentos agressivos dirigidos a si mesmo ou a terceiros, são mais comuns, tendo sido já relatado aumento significativo das tentativas de suicídio, principalmente no caso de coexistência de dependência de álcool. Também as internações hospitalares passam a ser mais frequentes.

É comum acontecer de uma pessoa que esteja sofrendo com sintomas de um funcionamento mental alterado, procurar no álcool ou outras substâncias de abuso, alívio para seu desconforto. Isto é verificado em diversos tipos de transtornos mentais, incluindo as depressões e transtornos bipolares. Medidas desse tipo são sempre prejudiciais, pois facilitam a negação da existência de problemas de saúde que devem ser encarados como tal e devidamente tratados, além de incorrer em vários dos problemas citados acima.

IV – COMO AJUDAR PESSOAS COM TRANSTORNOS DO HUMOR E COM USO PROBLEMÁTICO DE SUBSTÂNCIAS

O primeiro aspecto a ser considerado é a negação do problema. Uso, abuso e dependência devem ser reconhecidos e enfrentados, antes de tudo, pelos indivíduos acometidos. Isto pode ser difícil devido a motivos diversos como desinformação, medo de não poder superar as dificuldades e de desvalorização por parte de outras pessoas e de si mesmo. Por isso, é fundamental o abandono de atitudes preconceituosas. Isto vale tanto para o usuário, como para os familiares, amigos e profissionais de saúde. Ter problemas com álcool e drogas não significa fraqueza de caráter ou falta de “boa vontade” e respeito para com as pessoas próximas. São condições, geralmente patológicas. E mais ainda, são tratáveis.

É fundamental que um psiquiatra seja consultado e todas as informações devem ser fornecidas, do modo mais franco e aberto possível. Mesmo que uma pessoa acredite que o uso que faz de uma substância não seja prejudicial a sua saúde, isto deve ser discutido e esclarecido junto ao médico. Quando há comorbidade entre transtorno do humor e transtorno de uso de substâncias, o tratamento para ambos deve ocorrer ao mesmo tempo.

Vários medicamentos são de grande utilidade, tanto para o tratamento das depressões e dos quadros de mania, hipomania ou mistos. Assim também é no que diz respeito ao cuidado contínuo que visa evitar ou minimizar o surgimento de novos episódios da doença. Do mesmo modo, para os transtornos decorrentes de uso de álcool e outras drogas, os remédios podem ter papel muito importante no conjunto das ações terapêuticas. Além do tratamento farmacológico, diversas modalidades de intervenções psicossociais, como as psicoterapias e ações de reintegração social, podem ser preciosas. Medicamentos devem ser sempre prescritos por médicos com experiência nessas áreas e as intervenções psicossociais por pessoas com formações específicas, como psicólogos e assistentes sociais (embora existam médicos psiquiatras que têm formação adicional em psicoterapia e estejam capacitados para participar também nesta parte do tratamento).

V – BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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